Não há democracia sem igualdade de gênero
10 de January de 2024
A violência contra mulheres e meninas é um dos abusos dos direitos fundamentais mais disseminados e persistentes a nível global que, em certa medida, decorre do que consideramos “normal” em nossas sociedades. Além de condenar veementemente o fato de que uma em cada três mulheres no mundo sofre violência física ou sexual, devemos nos questionar sobre o que estamos normalizando como sociedade para que isso aconteça.
Diante dessa pergunta, o Índice de Normas Sociais de Gênero publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) revela que 90% da população tem pelo menos um preconceito fundamental contra as mulheres, que vai desde a crença de que os homens são melhores líderes empresariais e têm mais direito a um emprego do que as mulheres até a convicção de que não há problema em um homem bater em sua parceira. A violência baseada em gênero não é um fenômeno que surge do nada, e sua prevenção e erradicação também exigem que cada um de nós seja consciente dos próprios preconceitos.
A ONU Mulheres e o PNUD trabalham para reduzir a discriminação de gênero e transformar atitudes sexistas por meio do estímulo a normas sociais e papéis de gênero positivos. Isso requer o empoderamento de meninas e mulheres assim como um trabalho com toda a sociedade para banir estereótipos que promovem masculinidades violentas. Para isso, a ONU Mulheres está aplicando as ciências comportamentais para envolver os homens e engajá-los na prevenção da violência contra mulheres e meninas com campanhas de conscientização mais eficazes e adaptadas às realidades de cada país. As normas sociais que limitam os direitos das mulheres também prejudicam a sociedade como um todo; elas limitam a expansão do desenvolvimento humano e aumentam as lacunas de desigualdade.
Não é coincidência que a dificuldade em progredir nas normas sociais de gênero esteja ocorrendo em meio a uma crise de desenvolvimento humano. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) global perdeu valor em 2020 pela primeira vez na história, e o mesmo ocorreu no ano seguinte. Por sua vez, para a América Latina e o Caribe, o PNUD estimou – com base em seu Índice de Pobreza Multidimensional com foco nas mulheres – que 27,4% das mulheres em 10 países da região vivem em condições de pobreza multidimensional. O impacto da pobreza sobre as mulheres varia de acordo com sua localização no território: nos 16 países analisados, 19% das que vivem em áreas urbanas são multidimensionalmente pobres, enquanto 58% vivem em áreas rurais. As mulheres mais pobres são as que enfrentam as desigualdades mais acentuadas, participam menos do mercado de trabalho e experimentam mais escassez de tempo devido ao excesso de trabalho de cuidado não remunerado.
Essas lacunas de desigualdade, além de serem uma barreira ao desenvolvimento humano, são uma ameaça à democracia. A América Latina e o Caribe, a terceira região mais democrática do mundo e a única região emergente que aspira – e ainda tem a possibilidade de – alcançar o desenvolvimento por meio da democracia e do respeito aos direitos humanos, não terá sucesso se continuar a ser a região mais violenta e perigosa para as mulheres. O relatório Latinobarómetro 2023 aponta para uma clara regressão democrática na América Latina: a porcentagem de sua população que vê a democracia como forma preferida de governo caiu de 60% em 2000 para 48% em 2023. As mulheres continuam sub-representadas na tomada de decisões e são as mais insatisfeitas com a democracia (70%). Ao mesmo tempo, de acordo com os dados mais recentes divulgados por órgãos oficiais ao Observatório de Igualdade de Gênero para a América Latina e o Caribe, pelo menos 4.050 mulheres tiveram suas vidas interrompidas em 2022. 4.004 mulheres da América Latina e 46 do Caribe, de 26 países da região, foram vítimas de femicídio ou feminicídio.
Esse é um sinal claro de que, apesar dos avanços em vários países da região na aprovação de marcos legais específicos e abrangentes e no estabelecimento de promotorias especializadas e protocolos para responder à violência de gênero, os direitos fundamentais das mulheres ainda não se traduziram em conquistas tangíveis. Sem uma governança efetiva e instituições fortes que garantam às mulheres e meninas o pleno gozo de seus direitos, inclusive o direito de viver uma vida livre de violência e discriminação, será impossível recuperar a confiança na democracia da região.
Na construção de sociedades mais pacíficas, justas e inclusivas, o acesso universal à justiça é indispensável para erradicar a violência de gênero e a impunidade. As meninas, adolescentes e mulheres que sofrem violência não encontram amparo suficiente no sistema judiciário e, quando têm a coragem de denunciar, muitas vezes são revitimizadas até desistirem da denúncia e da busca por ajuda e proteção de instituições públicas. Ao mesmo tempo, essas mulheres têm uma carga de trabalho tripla: encaram o trabalho de cuidado, o trabalho doméstico e empregos remunerados, geralmente precários, informais e de baixa renda.
Além disso, grande parte de tudo o que envolve o processo judicial recai sobre a reclamante, que deve não apenas comparecer ao tribunal em diversas ocasiões como também arcar com os custos financeiros de seu deslocamento, as dificuldades de organizar suas responsabilidades domésticas e o medo de represálias do agressor ou de membros de sua comunidade.
A isso se soma a possível falta de conhecimento que muitas mulheres podem ter sobre procedimentos judiciais ou extrajudiciais, bem como as dificuldades de acesso a serviços gratuitos e/ou a falta de conhecimento sobre a existência deles. Pesa também a pouca ou nenhuma informação pública sobre serviços especializados. Por exemplo, no caso de violência, costuma haver desconfiança por parte das mulheres em relação à rapidez e à eficácia da resposta judicial à situação delas e, além disso, elas muitas vezes enfrentam práticas de revitimização, como se verem obrigadas a recontar os fatos em várias ocasiões ou terem seu testemunho questionado.
O PNUD e a ONU Mulheres pedem a construção de sociedades mais justas para as mulheres. Todas as pessoas e sociedades podem progredir, seja por meio da educação, da mobilização social, da adoção de medidas legais e políticas, da defesa de maiores orçamentos para prevenir a violência, seja por meio da promoção do diálogo e da construção de consensos para romper preconceitos e abrir caminho para sociedades mais pacíficas, seguras, justas, inclusivas e igualitárias como pré-requisito para não deixar ninguém para trás no caminho do desenvolvimento sustentável.
Publicado originalmente no jornal El País.